eram apenas 17h30min, mas o dia invariavelmente já se aproximava do fim. abro a porta e vou para fora, parecia já noite cerrada pelas nuvens negras que se formavam no horizonte. fitei-as com o olhar e puxei o fecho do casaco até cima, na tentativa vã de superar o frio, respirei fundo, e comecei a caminhar. algumas dezenas de metros à frente começaram a cair algumas gotas, mas depressa progrediram para uma chuva torrencial. não tinha chapéu, não havia local algum onde me abrigar, continuei como se não fizesse caso. foi então que tu apareceste; encostaste o carro à berma, abriste a porta do lado direito e por um grito abafado pelo temporal percebi que me estavas a chamar. fui na tua direcção e entrei no carro.
- que azar ter começado a chover, logo agora - disseste.
- tens razão, ainda bem que apareceste - respondi numa espécie de agradecimento.
- diz-me, para onde vais? eu levo-te.
«boa pergunta», pensei. para onde é que eu ia? agora com a pergunta formulada, por mais que desse voltas à cabeça, apercebi-me que não tinha resposta para ela.
- não sei bem.
- não sabes? como não sabes?
- não sei. a verdade é que chega esta hora do dia e nunca sei para onde ir, porque não tenho para onde ir. não há lugar algum em que esteja alguém à minha espera ou a precisar de mim. - continuei a explicar, ainda que hesitante. não sabia se entenderias tudo aquilo que eu te estava a tentar transmitir ou, por outro lado, fosse excessiva explicação para quem mal conhecia. - todos os dias, a esta mesma hora, faço um trajecto rotineiro, tentando-me convencer a acreditar num propósito, mas ele não existe. o mais provável é acabar num café, sozinha, a ler enquanto desespero por encher os meus pulmões de fumo.
- como se estivesses à procura de algo que nunca encontras? - perguntaste em jeito de resposta.
assenti com a cabeça e, no momento seguinte, o silêncio apoderou-se do interior do veículo: não de uma maneira ríspida e pesada, mas sim de uma forma inacreditavelmente leve que se moldava e acolhia tudo aquilo que ambos estávamos a sentir. por esta altura, guiavas pelas ruas da cidade sem qualquer destino, estou quase certa que passámos por algumas pessoas mais do que uma vez, mas serviu o intento de prolongar a nossa conversa. de súbito, alongaste os braços e endireitaste as costas, deslizaste as mãos com agilidade sobre o volante, fazendo o carro curvar à direita. fechei os olhos, deixei-me levar por ti, sabendo apenas que nos afastávamos do centro.
alguns minutos depois, não sei ao certo, paraste o carro e anunciaste:
- chegámos.
«chegámos? chegámos onde?» foi a pergunta que me surgiu interiormente. abri os olhos e, tal como tu, contemplei o local que nos envolvia, dotado de uma calma e beleza características, capazes de, ainda que por breves instantes, sugar qualquer tristeza. por fim, quebras o silêncio:
- observa bem. o rio, como a força das suas águas conseguem, a pouco e pouco, quebrar as enormes rochas em milhares de pequenos pedaços. vê como as árvores são velhas, mas também como as suas folhas se mantêm verdes e as sua raízes são fortes, apesar de todas as marcas do tempo. a luz, como a sua energia, passados tantos anos, ainda atravessa por entre todas as folhas até chegar aos nossos olhos. e o solo, se não fosse ele, se o chão que pisamos não fosse negro e sujo, nunca nada seria tão harmonioso e distinto.
pensei dizer alguma coisa, mas nada me ocorreu, fiquei ali apenas a absorver tudo aquilo que dizias.
- bem, o que eu te estou a tentar dizer é que também eu me sinto perdido, mas,- nisto fizeste uma pausa, enquanto te tentavas convencer a ti mesmo - mas temos de acreditar. acreditar que o tempo e a persistência nos revelarão um propósito e, quem sabe, virá alguém ajudar-nos a encontrá-lo. até lá temos de ir resistindo, na verdade, é também a dor que nos possibilita a sensação de felicidade ou bem-estar; é tudo uma questão de relatividade, não te parece?
- sim, acho que sim.
abri a porta do carro, fui até lá fora e desci o caminho que acaba junto ao rio. precisava de sentir aquela água na pele, descalçei-me e molhei o pé direito; imediatamente senti uma dor aguda que se entranhou no lúmen dos meus ossos, a água estava gelada. tirei o pé de dentro de água. olhei para cima e vi-te, de pé, no enorme granito em frente do carro. constatei nos teus olhos: sentiste a minha dor. voltámos para dentro do carro. desta vez, fiz eu as perguntas:
- sabes o que é o amor? achas que já o sentiste?
- não sei.
- e porquê?
- não sei, talvez por ser algo demasiado abstracto.
- exactamente. felicidade. amor. não sei o que são, mas foda-se, ou sou eu que não estou calibrada para o sentir verdadeiramente ou então vejo-os constantemente a ser confundidos e banalizados. sabes, às vezes sinto-me como uma ilha qualquer, sem nenhuma ligação possível, onde, o que quer que tentes semear, não irá sequer nascer, pois está já condenado a morrer. não, eu não sei o que é amar ou ser amada. duvido mesmo que alguma vez saberei, mas se calhar está destinado a ser assim. - fiz uma pausa e tu continuaste sem dizer nada - eu sei o que é sentir inexplicavelmente. sim, sei o que é desejar alguém incontrolavelmente, com todas as tuas forças, de tal maneira que todo o teu corpo estremece e os teus sinais vitais se alteram só de pensar numa determinada pessoa, uma pessoa que se tornou como que um prolongamento de ti. haver uma empatia tal que se é capaz de querer para ela tudo o que queres para ti, acolher em ti todas as suas paranóias e vontades. sabes do que falo?
- melhor do que possas imaginar.
- há semanas que tento decifrar as trocas de olhares, mas para quê? será que devo saber, será que quero saber? a verdade é que sou, pela primeira vez, capaz de sentir uma intimidade verdadeiramente intensa. sim, contigo, ainda que nem te conheça, mas será isso importante, visto que nunca chegamos a conhecer alguém realmente? o certo é que basta estar por baixo do mesmo tecto que tu para me sentir segura, como se tivéssemos combinado estar ali para me protegeres e eu a ti. quando te vais embora, tudo perde o sentido, fico totalmente perdida. só penso em ir atrás de ti, mas contenho-me e, já de madrugada, adormeço na esperança de que apareças nos meus sonhos.
neste momento, não disse mais nada, não porque não tivesse mais nada a dizer, simplesmente, já não era capaz de articular as palavras que ressoavam na minha cabeça. os teus olhos continuavam cravados em mim, enquanto eu olhava em frente a observar a chuva a cair. senti descargas eléctricas que me percorriam da cabeça aos pés, ao mesmo tempo que perdia qualquer conteúdo que existisse em mim. do meu olho direito caiu uma lágrima e imediatamente fechei os olhos. tinha acabado de perder toda a minha densidade, sentia-me vazia, completamente entregue a ti; podia morrer ali, desde que fosse ao teu lado. de seguida, num toque electrizante, puxaste-me pelo queixo, a tua cara moveu-se em direcção à minha, pousaste os teus lábios nos meus, trazendo-me de volta à realidade. deixei de ser uma ilha. abraçaste-me e ali ficámos, num tempo indeterminado.
alguns minutos depois, não sei ao certo, paraste o carro e anunciaste:
- chegámos.
«chegámos? chegámos onde?» foi a pergunta que me surgiu interiormente. abri os olhos e, tal como tu, contemplei o local que nos envolvia, dotado de uma calma e beleza características, capazes de, ainda que por breves instantes, sugar qualquer tristeza. por fim, quebras o silêncio:
- observa bem. o rio, como a força das suas águas conseguem, a pouco e pouco, quebrar as enormes rochas em milhares de pequenos pedaços. vê como as árvores são velhas, mas também como as suas folhas se mantêm verdes e as sua raízes são fortes, apesar de todas as marcas do tempo. a luz, como a sua energia, passados tantos anos, ainda atravessa por entre todas as folhas até chegar aos nossos olhos. e o solo, se não fosse ele, se o chão que pisamos não fosse negro e sujo, nunca nada seria tão harmonioso e distinto.
pensei dizer alguma coisa, mas nada me ocorreu, fiquei ali apenas a absorver tudo aquilo que dizias.
- bem, o que eu te estou a tentar dizer é que também eu me sinto perdido, mas,- nisto fizeste uma pausa, enquanto te tentavas convencer a ti mesmo - mas temos de acreditar. acreditar que o tempo e a persistência nos revelarão um propósito e, quem sabe, virá alguém ajudar-nos a encontrá-lo. até lá temos de ir resistindo, na verdade, é também a dor que nos possibilita a sensação de felicidade ou bem-estar; é tudo uma questão de relatividade, não te parece?
- sim, acho que sim.
abri a porta do carro, fui até lá fora e desci o caminho que acaba junto ao rio. precisava de sentir aquela água na pele, descalçei-me e molhei o pé direito; imediatamente senti uma dor aguda que se entranhou no lúmen dos meus ossos, a água estava gelada. tirei o pé de dentro de água. olhei para cima e vi-te, de pé, no enorme granito em frente do carro. constatei nos teus olhos: sentiste a minha dor. voltámos para dentro do carro. desta vez, fiz eu as perguntas:
- sabes o que é o amor? achas que já o sentiste?
- não sei.
- e porquê?
- não sei, talvez por ser algo demasiado abstracto.
- exactamente. felicidade. amor. não sei o que são, mas foda-se, ou sou eu que não estou calibrada para o sentir verdadeiramente ou então vejo-os constantemente a ser confundidos e banalizados. sabes, às vezes sinto-me como uma ilha qualquer, sem nenhuma ligação possível, onde, o que quer que tentes semear, não irá sequer nascer, pois está já condenado a morrer. não, eu não sei o que é amar ou ser amada. duvido mesmo que alguma vez saberei, mas se calhar está destinado a ser assim. - fiz uma pausa e tu continuaste sem dizer nada - eu sei o que é sentir inexplicavelmente. sim, sei o que é desejar alguém incontrolavelmente, com todas as tuas forças, de tal maneira que todo o teu corpo estremece e os teus sinais vitais se alteram só de pensar numa determinada pessoa, uma pessoa que se tornou como que um prolongamento de ti. haver uma empatia tal que se é capaz de querer para ela tudo o que queres para ti, acolher em ti todas as suas paranóias e vontades. sabes do que falo?
- melhor do que possas imaginar.
- há semanas que tento decifrar as trocas de olhares, mas para quê? será que devo saber, será que quero saber? a verdade é que sou, pela primeira vez, capaz de sentir uma intimidade verdadeiramente intensa. sim, contigo, ainda que nem te conheça, mas será isso importante, visto que nunca chegamos a conhecer alguém realmente? o certo é que basta estar por baixo do mesmo tecto que tu para me sentir segura, como se tivéssemos combinado estar ali para me protegeres e eu a ti. quando te vais embora, tudo perde o sentido, fico totalmente perdida. só penso em ir atrás de ti, mas contenho-me e, já de madrugada, adormeço na esperança de que apareças nos meus sonhos.
neste momento, não disse mais nada, não porque não tivesse mais nada a dizer, simplesmente, já não era capaz de articular as palavras que ressoavam na minha cabeça. os teus olhos continuavam cravados em mim, enquanto eu olhava em frente a observar a chuva a cair. senti descargas eléctricas que me percorriam da cabeça aos pés, ao mesmo tempo que perdia qualquer conteúdo que existisse em mim. do meu olho direito caiu uma lágrima e imediatamente fechei os olhos. tinha acabado de perder toda a minha densidade, sentia-me vazia, completamente entregue a ti; podia morrer ali, desde que fosse ao teu lado. de seguida, num toque electrizante, puxaste-me pelo queixo, a tua cara moveu-se em direcção à minha, pousaste os teus lábios nos meus, trazendo-me de volta à realidade. deixei de ser uma ilha. abraçaste-me e ali ficámos, num tempo indeterminado.
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