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24 de abril de 2013

o ofício de viver - parte I

" para possuir qualquer coisa, ou alguém, é preciso não nos abandonarmos a essa coisa, ou a esse alguém, não perder a cabeça, em suma, permanecer superior. mas é a lei da vida que gozamos apenas aquilo a que nos abandonamos. eram uns espertalhões os inventores do amor de Deus: não existe outra coisa que se possa possuir e gozar ao mesmo tempo.

se é verdade que nos habituamos à dor, como é que, com o andar dos anos, sofremos cada vez mais?

a única alegria neste mundo é a de começar. é belo viver, porque viver é começar, sempre, a cada instante. quando essa sensação desaparece - prisão, doença, hábito, estupidez - deseja-se morrer.

nunca devias levar a sério as coisas que não dependem apenas de ti. como o amor, a amizade e a glória.

ninguém se abandonará a ti, se não vir nisso algum proveito.

a grande, tremenda ironia da vida é a que podemos ser idiotas a todo o momento.

e, no entanto, não consigo pensar uma só vez na morte sem tremer perante esta ideia: a morte virá necessariamente, por causa ordinárias para todas as pessoas, tanto mais infalível quanto mais perto estiver a hora. será um facto natural como o cair da chuva. e é com isto que não me resigno: porque não procuramos uma morte voluntária, que seja afirmação de livre-arbitrio, que exprima qualquer coisa, em vez de nos deixarmos morrer? porquê?
pelo seguinte. adiamos sempre a decisão sabendo - esperando - que mais um dia, uma hora a mais de vida poderão ser a afirmação, expressão de uma vontade ulterior que, escolhendo a morte, excluiríamos. porque, em suma - falo de mim próprio -, pensa-se sempre que ainda há tempo. e chegará o dia da morte natural. e teremos perdido a grande ocasião de fazer, por um motivo, o acto mais importante de toda a vida.

habituamo-nos a uma coisa afastando-nos dela, quer dizer, perdendo o interesse.

só sabe fazer-se amar aquele que sabe fazer-se odiar, pela mesma pessoa.

por muito santinhos que sejamos, desgosta-nos e ofende-nos saber que um outro fode.

se foder não fosse a coisa mais importante da vida, o Génese não começaria por aí.

e casar quer dizer construir uma vida. e tu nunca a construirás. isto significa ter sido criança demasiado tempo: exactamente.

que importa viver com os outros quando cada um se está nas tintas para o que é importante para os outros?

só existe um vício, o desejo.

o trágico da vida é que o bem e o mal são a mesma matéria de acção - desejo.

a consciência não é mais do que um faro, uma cor conhecida pelo tacto.

amar uma pessoa é como dizer: daqui em diante esta pessoa pensará mais na minha felicidade do que na dela. há algo mais imprudente?

porque tu vives de pensamentos, ela, de realidades. e a realidade nunca é desequilíbrio, nunca é pecado. (...) e o mal nasce sempre de quem está dividido, não de quem é real.

a arte de viver é a arte de saber acreditar nas mentiras.

porque, seja quem for que te aceite, tu terás sempre aquele terror atravessado na garganta, de não a satisfazer, e saberás que é mais do que certo que te abandonará.

não nasceste olímpico e nunca o serás: os teus esforços são inúteis.

quem quereria dedicar-lhe a vida? quero dizer a vida de maneira absoluta.

é tudo questão de mercado.

a morte é o fim de tudo.

o que há de horrível nas desgraças é que nos habituam a interpretar como desgraças também as coisas indiferentes.

temos fraquezas. estamos convencidos que ninguém pode mudar a bagagem. procuramos com habilidade transformar as fraquezas em valores. mas se é, precisamente, a habilidade que falta na nossa bagagem?

pode tolerar-se que aquela que era toda a nossa vida cesse de ser tal para nós e comece a sê-lo para outrem ou para si própria?

para obter um amor trágico é necessário habilidade. mas são precisamente os incapazes de habilidade que têm sede de amor trágico.

raciocinio de apaixonado: se eu morresse, ela continuaria a viver, a rir e a tentar a sua sorte. mas abandonou-me, e continua a viver, a rir, etc. portanto, estou morto.

é um facto que verdadeiramente teu é apenas aquilo que te volta infinitas vezes à fantasia e não podes evitar de sonhar. problema: escolhe-o porque tens gostos já formados, ou é isso que te forma o gosto? a resposta habitual - que nascem juntos - não me parece grande coisa.

quem odeia, nunca está só: está em companhia do ser que lhe falta.

o verdadeiro mal vem do que outrora era bom.

porque quem procura encontra, e as experiências nascem, sobretudo, no nosso foro íntimo, e temos as aventuras que quisermos ter.

o efeito que produz a dor (desgraças, sofrimentos, quando são mentais) é o de criar um arame farpado na mente e constranger os pensamentos a evitar certas áreas, para escapar às angústias que reinam ali. neste sentido, sofrer limita a eficácia espiritual.

em suma: a boa consciência não é senão a expressão do desejo que todos temos: ser nós próprios - estar à vontade.

a arte de viver - dado que para viver é preciso fazer sofrer os outros ( ver vida sexual, ver comércio, ver qualquer actividade) - consiste em habituarmo-nos a fazer todas as patifarias sem abalar o nosso equilíbrio interior. ser capaz de todas as patifarias é a melhor bagagem que um homem pode possuir.

é pecado o que inflige remorsos.
é natural que as mesmas coisas que sejam pecado para uns e para outros não: basta não ter remorsos. como fazer? (...) libertarmo-nos da ideia de que o remorso é uma realidade absoluta que nos cai infalivelmente em cima. sentem-no, apenas, consciências educadas de determinada maneira. é portanto, possível sermos educados de maneira que não o sintamos. diz-se que sentir remorsos por múltiplos actos, em relação aos quais o não-educado nada sente, é sinal de fineza e riqueza interiores. é pois verdade? não será possível conceber riqueza interior  que conduza à exclusão de estados de consciência, mas que os aceite todos, mesmo os que habitualmente provocam remorsos? 

o remorso de não ter sido capaz não dá qualquer conforto.

não há razão para que o homem sofra neste mundo, se não existe a responsabilidade moral, quer dizer, a capacidade - o dever - de dar significação ao sofrimento.

nas relações com as pessoas, basta um instante de ingenuidade para arruinar dias de dedicação a outrem.

tenho de deixar de orgulhar-me da minha incapacidade de sentimentos normais."



24 de junho de 2012

"estou na cama, mergulhado na doçura de um semissono. às seis horas, depois do primeiro e leve despertar, estendo a mão para o pequeno transístor poisado perto da minha almofada e carrego no botão. ouço as noticias da manhã, quase sem distinguir as palavras, e adormeço de novo, enquanto as frases que ouço se vão transformando em sonhos. é a fase mais bela do sono, o momento mais delicioso do dia: graças à rádio, saboreio os meus perpétuos despertares e adormecimentos, essa oscilação soberba entre a vigília e o sono, esse movimento que por si só me livra do desgosto de ter nascido."

3 de maio de 2012

"só há um modo de escapar de um lugar: é sairmos de nós. só há um modo de sairmos de nós: é amar-mos  alguém."

1 de maio de 2012

muss es sein?



«todas essas interrogações que questionam o amor, que o medem, o perscrutam, o inspeccionam, não se arriscarão a matá-lo na casca? se somos incapazes de amar, talvez seja por desejarmos ser amados, ou seja, querermos alguma coisa do outro (o seu amor), em vez de chegarmos junto dele sem reivindicações e não querermos senão a sua simples presença.»

descer as escadas sem a tua presença não tem significado. o teu lugar permanece bem definido e, no entanto, sinto-te a diluir com a chuva. na verdade, no teu lugar não há nada senão o vazio provocado pela tua ausência (que só se justifica ser assim chamado pelo facto de estares lá habitualmente); à minha passagem não sinto o teu cheiro intenso, não imagino os teus olhos cravados em mim, não ouço a música que tu ouves, nem sequer faz sentido tentar desvendar os teus pensamentos ou, por outro lado, tentar forçar os meus a entrar na tua mente, através do olhar.
o dia passa, chega a minha/nossa hora. algo dentro de mim me sugere fazer o meu/nosso 'caminho do costume', caminho esse que já não piso há semanas, e foi assim que o dia dois voltou a ser dia zero: vejo-te de relance e todo o meu corpo é percorrido por uma descarga eléctrica - afinal não fugiste - continuo a caminhar. certo, até aqui nada mais do que a vontade de te ter presente. à medida que me afasto surgem outro pensamentos: não posso, no entanto, negar a vontade crescente que te levantes agora mesmo do sítio onde estás e venhas atrás de mim, me persigas velozmente, me agarres pelo braço e me guies para ti. sim, esta vontade é real. ao mesmo tempo observo cuidadosa e estranhamente tudo o que me envolve, ainda que esteja na verdade a olhar bem para dentro, para as profundezas do meu ser, numa tentativa de compreender: serei, então, incapaz de amar? na minha cabeça forma-se, por instantes, um clarão, apagando todas as reflexões. talvez sim, talvez não.

«desde que te amo, o mundo inteiro te pertence. por isso, nunca cheguei a dar-te nada. apenas devolvi. não espero retribuição. esta mensagem, contudo, pede resposta. à velha maneira: se gostas de mim, se me correspondes, dobra o canto desta carta e devolve-me amanhã.»

24 de abril de 2012

"é natural que quem quer «elevar-se» sempre mais, um dia, acabe por ter vertigens. o que são vertigens? medo de cair? mas então porque é que temos vertigens num miradoiro com um parapeito? as vertigens não são medo de cair. é a voz do vazio por debaixo de nós que nos enfeitiça e atrai, o desejo de cair do qual, logo a seguir, nos protegemos com pavor. (...) poderia talvez dizer que ter vertigens é embriagarmo-nos com a nossa própria fraqueza. temos consciência da nossa fraqueza, mas, em vez de resistir-lhe, queremos abandonar-nos a ela. embriagamo-nos com a nossa própria fraqueza, queremos ficar ainda mais fracos, cair por terra em plena rua à frente de toda a gente, ficar por terra, ainda mais abaixo que a terra."
"...enfrentei pela primeira vez o meu ser natural (...). descobri que a minha obsessão de que cada coisa estivesse no seu lugar, cada assunto no seu tempo, cada palavra no seu estilo, não era o prémio merecido de uma mente ordenada mas, pelo contrário, um sistema completo de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. descobri que não sou disciplinado por virtude, mas como reacção contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir a minha mesquinhez, que passo por prudente por ser pessimista, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que não se saiba que pouco me importa o tempo alheio."

17 de abril de 2012

um homem não é uma ilha

"o cantor pousou com cuidado a guitarra aos pés e tirou de dentro do estojo uma vela. uma vela branca e grossa. acendeu-a com um fósforo e fê-la agarrar a um pratinho no qual tinha deixado cair um pingo de cera. em seguida ergueu o prato bem alto com ar sério, armado em filosofo grego.
- podem baixar as luzes na sala, por favor? - pediu o homem. um empregado diminuiu a intensidade da luz. - mais um bocadinho, pode ser?
quando a sala ficou quase às escuras, começámos a distinguir nitidamente a chama da vela. com o copo de uísque na mão, eu não tirava os olhos dele.
- como já devem estar fartos de saber, o homem experimenta vários tipos de dor ao longo da sua existência - disse ele numa voz baixa mas audível. - até hoje, e pela parte que me toca, já senti na pele a dor nas suas mais diversas formas e imagino que o mesmo terá acontecido convosco. mas estou certo de que, na maior parte dos casos, terá sido muito dificil traduzir por palavras essa mesma dor aos outros. por isso é que as pessoas dizem que só quem passa por isso é que sabe. mas será realmente assim? eu sou dos que não acreditam nisso. por exemplo, se vemos alguém em sofrimento à frente dos nossos olhos, também nós conseguimos sentir a sua dor e partilhar do seu sofrimento como se fosse nosso. é chamada a força da empatia. faço-me entender? - fez uma pausa e voltou a varrer a sala com o olhar. - se as pessoas cantam, é porque querem ter a possibilidade de despertar os sentimentos dos outros, porque querem sair da sua pequena casca e partilhar com os outros as dores e as alegrias. mas isso, como seria de esperar, não é tarefa fácil. por isso esta noite gostaria de fazer uma pequena experiência que vos permitirá criar, por assim dizer, uma certa empatia física. luzes, por favor.
estava toda a gente imóvel, de olhos postos no palco, contendo a respiração. no meio do silêncio, o homem olhava no vazio com o objectivo de fazer uma pausa, ou então de se concentrar mentalmente. em seguida, sem dizer palavra, pôs a palma da mão esquerda sobre a vela e começou a aproximá-la da chama pouco a pouco. entre o público alguém soltou um som que tanto podia ser um suspiro como um gemido. podia ver-se a ponta da chama a queimar a palma da mão. o crepitar da carne queimada era quase perceptível. uma mulher deixou escapar um grito sufocado. os outros espectadores observavam a cena, horrorizados. o homem, com a cara brutalmente contraída, suportava a dor. mas que diabo quer isto dizer, lembro-me de ter pensado, que pretende ele provar com semelhante estupidez? notei que a minha boca começava a ficar seca. após ficar assim, naquela posição, durante cinco ou seis segundos, o homem afastou devagarinho a palma da chama e pousou o prato com a vela no chão. depois cruzou as duas mãos, apertando a palma direita contra a esquerda.
-como acabaram de ver, minhas senhoras e meus senhores, a dor pode consumir literalmente o corpo de um homem - disse. a sua voz mantinha o mesmo tom de antes: baixa, audível e serena. todos os sinais de sofrimento tinham desaparecido do seu rosto, que afivelava mesmo um ligeiro sorriso. - e a dor que eu devia estar a experimentar, todos puderam senti-la como se fosse vossa. é esse o poder da empatia.
o homem separou então ligeiramente as mãos que ainda mantinha unidas. e deixou ver um pequeno lenço vermelho, que desdobrou à vista de toda a gente. em seguida estendeu os braços e mostrou as palmas abertas aos presentes na sala. não apresentavam o menor sinal de queimadura. (...) o homem guardou a guitarra no estojo, desceu do palco e desapareceu."

8 de março de 2012

os meus pensamentos pertenceram ao mar



"uma vez que a memória e as sensações são por demais incertas e demasiado parciais, a fim de provar a verosimilhança de determinados acontecimentos, baseamo-nos numa certa realidade - chamemos-lhe uma realidade alternativa - que precisa de outra realidade para relativizar a primeira. por seu turno, é preciso uma terceira realidade para lhe servir de base. cria-se assim na nossa consciência uma cadeia que continua indefinidamente e, num certo sentido, pode afirmar-se que é através dessa sucessão, através da existência dessa cadeia, que adquirimos consciência da nossa própria existência. porém, basta que essa cadeia se quebre e ficamos imediatamente perdidos. o que é real? a realidade encontra-se deste lado da cadeia ou do outro?"

a oeste do Sol

"e depois, um belo dia, alguma coisa morre dentro de ti. (...) não sei. qualquer coisa. dia após dia, à força de passares a vida a ver o Sol levantar-se a leste, cruzar os céus e afundar-se a oeste, sentes que qualquer coisa dentro de ti se quebra e morre. pões de parte o arado e, sem pensar em nada, com a mente vazia de pensamentos, pões-te a caminhar em direcção a oeste. rumo a uma terra que fica a oeste do Sol. continuas sempre a andar, dias a fio, sem comer nem beber, até que acabas por cair de bruços e morres."

5 de março de 2012



 "but i didn't understand then. that i could hurt somebody so badly that he would never recover. that a person can, just by living, damage another human being beyond repair."

17 de janeiro de 2012

" o seu problema, da maneira que eu o vejo, é que a sua sombra, como é que hei-de dizer?, ténue. Foi isso que pensei da primeira vez que lhe pus a vista em cima. Que a sombra que o amigo projecta no chão não tem metade da densidade que tem a das pessoas normais. (...) Isto é o que penso: em vez de andar à procura de gatos, deve começar antes a ver se encontra a outra metade da sua sombra. (...) É evidente que tem todo o direito de pensar o que quiser, mas também devia olhar para a questão na perspectiva da sombra. Se calhar sente-se pequena, quer dizer, na sua qualidade de sombra. Se eu fosse uma sombra, não me parece que gostasse nada de ficar reduzida a metade do meu tamanho."

7 de setembro de 2011

"Talvez tudo já esteja perdido de antemão, num qualquer lugar remoto. Ou então existe um sítio onde todas as coisas desaparecem, fundido-se umas nas outras, até formar uma única imagem. E, à medida que vamos vivendo, mais não fazemos do que descobrir - puxando-as para nós, umas atrás das outras, como quem desenrola um fio muito fino - tudo o que ficou para trás. Fechei os olhos e esforcei-me por me lembrar do maior número possível de coisas belas que tinham desaparecido da minha vida. Esforcei-me por chamá-las a mim, retê-las entre as mãos, mesmo sabendo que a sua existência seria efémera."