17 de abril de 2012

um homem não é uma ilha

"o cantor pousou com cuidado a guitarra aos pés e tirou de dentro do estojo uma vela. uma vela branca e grossa. acendeu-a com um fósforo e fê-la agarrar a um pratinho no qual tinha deixado cair um pingo de cera. em seguida ergueu o prato bem alto com ar sério, armado em filosofo grego.
- podem baixar as luzes na sala, por favor? - pediu o homem. um empregado diminuiu a intensidade da luz. - mais um bocadinho, pode ser?
quando a sala ficou quase às escuras, começámos a distinguir nitidamente a chama da vela. com o copo de uísque na mão, eu não tirava os olhos dele.
- como já devem estar fartos de saber, o homem experimenta vários tipos de dor ao longo da sua existência - disse ele numa voz baixa mas audível. - até hoje, e pela parte que me toca, já senti na pele a dor nas suas mais diversas formas e imagino que o mesmo terá acontecido convosco. mas estou certo de que, na maior parte dos casos, terá sido muito dificil traduzir por palavras essa mesma dor aos outros. por isso é que as pessoas dizem que só quem passa por isso é que sabe. mas será realmente assim? eu sou dos que não acreditam nisso. por exemplo, se vemos alguém em sofrimento à frente dos nossos olhos, também nós conseguimos sentir a sua dor e partilhar do seu sofrimento como se fosse nosso. é chamada a força da empatia. faço-me entender? - fez uma pausa e voltou a varrer a sala com o olhar. - se as pessoas cantam, é porque querem ter a possibilidade de despertar os sentimentos dos outros, porque querem sair da sua pequena casca e partilhar com os outros as dores e as alegrias. mas isso, como seria de esperar, não é tarefa fácil. por isso esta noite gostaria de fazer uma pequena experiência que vos permitirá criar, por assim dizer, uma certa empatia física. luzes, por favor.
estava toda a gente imóvel, de olhos postos no palco, contendo a respiração. no meio do silêncio, o homem olhava no vazio com o objectivo de fazer uma pausa, ou então de se concentrar mentalmente. em seguida, sem dizer palavra, pôs a palma da mão esquerda sobre a vela e começou a aproximá-la da chama pouco a pouco. entre o público alguém soltou um som que tanto podia ser um suspiro como um gemido. podia ver-se a ponta da chama a queimar a palma da mão. o crepitar da carne queimada era quase perceptível. uma mulher deixou escapar um grito sufocado. os outros espectadores observavam a cena, horrorizados. o homem, com a cara brutalmente contraída, suportava a dor. mas que diabo quer isto dizer, lembro-me de ter pensado, que pretende ele provar com semelhante estupidez? notei que a minha boca começava a ficar seca. após ficar assim, naquela posição, durante cinco ou seis segundos, o homem afastou devagarinho a palma da chama e pousou o prato com a vela no chão. depois cruzou as duas mãos, apertando a palma direita contra a esquerda.
-como acabaram de ver, minhas senhoras e meus senhores, a dor pode consumir literalmente o corpo de um homem - disse. a sua voz mantinha o mesmo tom de antes: baixa, audível e serena. todos os sinais de sofrimento tinham desaparecido do seu rosto, que afivelava mesmo um ligeiro sorriso. - e a dor que eu devia estar a experimentar, todos puderam senti-la como se fosse vossa. é esse o poder da empatia.
o homem separou então ligeiramente as mãos que ainda mantinha unidas. e deixou ver um pequeno lenço vermelho, que desdobrou à vista de toda a gente. em seguida estendeu os braços e mostrou as palmas abertas aos presentes na sala. não apresentavam o menor sinal de queimadura. (...) o homem guardou a guitarra no estojo, desceu do palco e desapareceu."

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