de mochila às costas, pelas ruas negras da cidade, eu vagueio sem destino. o olhar desconcentrado não deixa negar o caos constante, o brainstorming de conceitos e a tentativa de encaixar e decifrar todos os mindfucks. concretamente, as motivações que nos levam a não agir. does the body rule the mind or does the mind rule the body? i don't know, nem me parece que algum dia saberemos. sei que te quero, estou programada para sentir o teu perfume à tua passagem, para me deixar cegar por ele e, no entanto, os diálogos mentais não passam disso. todas as nossas conversas ou as músicas que dão ritmo às nossas manhãs, nunca sairão da minha cabeça, isto porque o medo está sempre lá, constantemente a provocar-nos com buscas infindáveis de causas-efeitos. desisto, foco-me nas palpitações eminentes no topo da nuca, até te encontrar perdido no meu horizonte. inconscientemente, acelero o passo, atravesso para o outro lado da rua. estou a seguir-te, já sinto as descargas de adrenalina a fluirem nas minhas veias. dobro a esquina e ali estás, parado. vens na minha direcção, levando-me a recuar até bater na parede.
- porque é que me estás a seguir? o que é que tu queres de mim?
começo a tremer e gaguejando respondo:
- isso depende.
- depende, mas depende de quê afinal? - interrompes-me e voltas a questionar.
- depende daquilo que tu queres de mim. - faço um esforço para te olhar nos olhos, mas vejo-me a desviá-los para o chão.
- do que eu quero de ti? porque é que haveria de querer algo de ti? eu não quero nada de ti, para além de que pares com isto. - a tua voz está cada vez mais ríspida, dando ênfase à tua exaltação crescente - sim, eu sei, eu sei muito bem o que tens andado a fazer ao longo destes meses. pensas que eu não sei que tudo o que aconteceu, os encontros e desencontros, não são meras coincidências ou acontecimentos casuais?
as tuas palavras são como pés de chumbo que pisam propositadamente os meus. é a hora, este é o momento, o timing exacto.
- pois não, até porque acredito que há coincidências que temos de ser nós a criá-las, - a tua expressão afirma claramente que não esperavas esta resposta. - e, no fundo, eu sei que gostas, tanto quanto eu, desta nossa valsa.
- ouve bem aquilo que estás a dizer, não faz sentido nenhum.
- não? então, explica-me, porque é que estás aqui a encostar-me a esta parede, porque é que os teus olhos contrariam as tuas palavras e chamam incessantemente por mim.
cheguei a ti, quebrei o teu suporte, a tua determinação desapareceu. sinto a tua respiração ofegante, tens de sair dali, viras as costas, mas eu agarro-te pelo braço e continuo:
- anda, admite que há desejos inexplicáveis, vontades externas a nós que nos fazem deixar a besta que há em nós percorrer os cantos mais sombrios e perversos das nossas mentes, aqueles que nem nós tínhamos consciência da sua existência. não acredito que não tenhas sonhado, a dormir e acordado, tal como eu. ou que mal feches os olhos não sintas as forças atractivas que trazem as tuas mãos para a minha fina cintura e que levam as minhas para os teus ombros fortes.
finalmente cedes, o teu pé esquerdo avança com o recuo do meu direito:
- olha bem à tua volta, olha para nós. achas mesmo que é possível?
consigo ouvir as tuas veias do pescoço latejantes, aos mesmo tempo que te aproximas e me envolves nos teus braços, num abraço mais intenso do que tudo, espero que saibas que ainda não te disse nada. começamos a caminhar, com a tua mão pousada no teu ombro, sem destino concreto.
- eu sei, eu percebo aquilo que tu queres dizer, mas será que devemos negar à priori os nossos instintos? se os seguirmos indiscriminadamente tornamo-nos autênticos animais, por outro lado, se os negarmos a todos, não passaremos de máquinas automatizadas e, no entanto, eles continuam no canto da nossa mente, sem nunca desaparecerem. tem de haver um equilíbrio, não te parece? tu és a pulsão primitiva à qual eu quero ceder verdadeiramente, o meu equilíbrio.
- pois, claro que percebes o que eu te digo. tens razão, mas ainda és jovem, a vida ainda te irá marcar muito. o que é que importa, para ti?
- eu sei lá, nunca soube descodificar muito bem o verdadeiro significado das coisas.
- refiro-me, neste momento, a nós. para ti, o que é que torna importante a relação de duas pessoas?
- entre duas pessoas, universalmente, não faço a mínima ideia, mas entre nós... é o teu silêncio, é o nosso jogo de olhares e sorrisos. é a nossa maneira única de comunicar, as subtilezas do dia a dia que a pouco e pouco me revelam a tua maneira de ser. ainda sinto em mim as reminiscências do estado em que fiquei no dia em que dei por ti a ouvir paranoid android ou a forma como o teu olhar penetrante me fez sentir transparente como nunca, a primeira vez que te vi. tudo isto levou a um crescendo incontrolável de intimidade que embala e dá ritmo à cumplicidade da nossa dança.
- e depois de tudo isso, o que é que nos resta?
- como assim?
- o que é que nos irá segurar quando tudo se tornar demasiado real?
- não sei, até porque, efectivamente, haverá alguma coisa suficientemente forte para nos segurar para sempre?
- tens razão.
- e o que devemos fazer, então?
- sabes, acho que uma das piores excentricidades da raça humana é a alegada necessidade de falar sobre tudo e nada, julgando estar assumidamente no controlo do que quer que seja. como se com as palavras transportasse algum tipo de luz que irá aclarar um qualquer futuro. como se de tudo soubesse, como se tudo o que diga seja digno de ser ouvido por outrem. há palavras que não devem ser proferidas de tão inúteis. pouca gente percebe a verdadeira magnitude do silêncio.
- e daí os passados meses.
- exactamente.
ao nosso ritmo lento, chegamos junto ao lago no parque da cidade, a relva intercalada com as ervas, está ainda húmida da última chuva que sobre ela caiu. sentas-te e eu pouso a minha cabeça sobre a tua perna, de modo a que os meus olhos cheguem ao fundo dos teus. continuas:
- passei noites e noites a sentir-te, estavas ali, mesmo ao meu lado, tenho plena noção disso - estamos em sintonia, penso. - lembro-me de ter o teu corpo sobre o meu, de sentir o pulsar do teu coração, próximo do meu peito; de acordar, a meio da noite, e ficar, enquanto olhava para ti, a tentar desvendar o teu intimo. sinto que te conheço como nunca conheci ninguém, sinto-te em mim.
- como eu te entendo. cruzaste vezes e vezes sem conta o meu pensamento, consciente e inconsciente. os fios que me puxam para ti são de uma resistência e força inimagináveis, sou incapaz de os controlar. e, bem, tudo o que eu faço é ceder, eu só queria poder-me deixar levar por ti. imaginei como seria a nossa vida a dois: seria simples, sei disso, dotada de um silêncio acolhedor e confortável, desligados de ambições e de lutas inúteis. as tardes chuvosas de domingo, de persianas fechadas, a percorrer todos os recantos dos nosso corpos frios.
- ao mesmo tempo que ouvíamos a discografia dos pink floyd. e não te esqueças da cerveja, a cerveja estaria sempre connosco! - soltas uma gargalhada e eu rio-me contigo.
fizeste-o com um propósito, tinha de ser feito. estávamos a dançar em terreno demasiado irregular. perdemo-nos a olhar para a crianças que correm à nossa volta, a tentar captar uma milésima da sua felicidade, até que eu volto a quebrar o silêncio:
- mas depois de tudo isto, explica-me, por favor, o porquê de estarmos a ter esta conversa se não irá mudar nada.
- não te sei explicar bem, mas por vezes os fios que nos unem formam nós que precisam de ser desfeitos, pode ser esse o caso. se calhar, desta vez, tudo isto precisava de ser dito, para que as forças não nos faltem e que, com a ausência delas, todos os fios se quebrem.
- eu sei que há coisas que só podem acontecer noutro tempo, noutra configuração, também sei que provavelmente esta é uma delas, mas e se tentássemos?
- e achas que o meu desejo não é esse? - beijas-me a testa enquanto me abraças - não iria resultar, eu sei que sabes isso.
- e é por situações como esta que nunca seremos tão felizes...
- como poderíamos vir a ser, eu sei, e, ao mesmo tempo, como toda a valsa tem um fim...
- também nunca cairemos tanto, como poderíamos, nunca chegaremos a conhecer o verdadeiro fundo do poço.
caímos num silêncio profundo, apenas ouvimos o balanço das árvores, e entretanto, está calor, demasiado calor, e a luminosidade cega. estamos os dois a tremer, estamos na mesma frequência. cedemos. vamos para tua casa, depressa. atiramos tudo para cima do sofá e eu corro na tua direcção; agarras-me, fico no teu colo e abraço-te, enquanto me tentas morder a orelha direita. segues para o quarto, deitas-me na cama e fechas todas as persianas. o quarto está tingido de negro e, no entanto, persigo o teu espesso vulto com o olhar; vagueias pelo quarto até chegares a mim. a minha mão toca a tua pele nua e suada, apreendendo todas as tuas cicatrizes. os teus olhos, enterrados no alicerce das minhas costas, trespassam qualquer vestigio de carne, preenchendo todos os vazios. os nossos corpos estremecem, as leis da física quebram-se: já não sei que mãos são as minhas, que olhos são os teus. a matéria que forma cada um de nós sobrepõe-se, ocupamos agora o mesmo espaço: vejo com os teus olhos, sentes através das minhas mãos. nunca mais haverá um eu sem ti, nem um tu sem mim. fazemos inevitavelmente parte um do outro. adormecemos envoltos um no outro. estamos ainda mais fundo, mais dentro um do outro, estamos do outro lado, numa dimensão paralela dotada de uma densidade extrema. os nossos corpos, vazios e nus, no centro, no olho de um furacão formado pela matéria que compõe as nossas mentes dementes. estas que nunca conheceram a estabilidade, a não ser a terrena proporcionada pela transposição dos nossos corpos com a gravidade. mas isso não interessa, e ali estamos nós, corpo e alma, separados e misturados. a inalcançavel unicidade mental que procuramos enquanto individualidade é agora encontrada na união das nossas almas, da nossa matéria sem-forma. é aqui, na separação do eu, na união dos nós que está o nosso eu verdadeiro, maximizado. como poderia eu encontrar-me sem te ter em mim?
acordo, passadas algumas horas, com a chuva fria a cair-me sobre a cara. estou de novo junto ao lago e é como se nada se tivesse passado, não fossem as tuas unhas cravadas nas minhas costas e eu não acreditaria. a mensagem é clara: esta foi a única vez. vai tudo voltar ao mesmo e, no entanto, nada será como antes. volto para casa com uma sensação de leveza insustentável, capturei a tua milionésima parte, mas, agora, apenas me faz pairar, pois ela não é realmente minha.
sigo para casa acompanhada pela escuridão, deito-me na cama e deixo-me cair na dormência da noite. o impulso nervoso começa a fluir, quase mecanicamente, mecanismos de auto-defesa: nada dura para sempre. o melhor a fazer é não processar nada e guardar.
o fim-de-semana chega ao fim e eu continuo dormente. segunda-feira, logo pela manhã, decido ir ao teu encontro, em vão, porque não estás. tento encaminhar o dia da melhor maneira, rodeio-me de gente para renegar a tua falta, de novo, em vão. resolvo, por fim, ir embora. estava eu no autocarro das 18h10min a dirigir-me para casa, perdida a observar tudo e nada através do vidro, quando, na próxima paragem, lá estavas tu sentado no nosso ponto de encontro. levantas-te apressado e fazes sinal ao motorista para parar. não podia acreditar, mas, imediatamente, percebi o que se estava a passar. pagas o bilhete e percorres os rostos de todos os passageiros, avanças até ao fundo e sentas-te ao meu lado. olho para ti, sorris e eu sussurro-te ao ouvido: "nunca voltes ao lugar, onde já foste feliz, por muito que o coração diga, não faças o que ele diz. são as regras da sensatez, vais sair a dizer que desta é de vez. só mais uma vez."
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