vou mentir e esconder
que tenho saudades dos dias em que
aparecias à porta de minha casa
trazendo um abraço apertado,
olhos sorridentes.
saudades da ambiguidade dos afectos
das palavras mudas
e de me perder
nos teus cabelos.

há muito que deixei de morar em ti.
não tenho em mim as coordenadas
do teu pensamento
e desconheço as direcções do teu toque.

não me recordo do cheiro da terra molhada,
dos dias em que choviam lágrimas em nós.
a meio do caminho
perdemos a receita do caldo lacrimal.

as palavras já não são mudas
e, no entanto,
não as ouço.
a small talk deixou de preencher
os interstícios
passou a ser corpo.
cansei. nunca foi para isso que me alistei.

a partida é uma ameaça constante.
há muito que fica mas
o regresso será sempre incerto.

ao contrário do que pensas,
a chama não se apagou.
a tua partida foi guiada pelas labaredas
que deixaste para trás.
e com elas o rasto de destruição
de um brilho avassalador.

os nossos corpos estão distantes
e eu estou aqui
e tu dormes.
e eu estou aqui.

onde quer que estejas.
não perguntes.
nem pela luz nem pela noite
me deixarei cegar,
irei sempre negar
até ao dia que decidas voltar
inteiramente.
sem merdas.

não vou mentir nem esconder
que tenho saudades
dos dias
em que via mais para além
das cinzas.